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“É uma profissão que precisa ser feita com amor”, diz a caminhoneira Marília Weide

Em entrevista exclusiva à IVECO, caminhoneira Marília Weide conta que a sensação de liberdade que a vida na estrada proporciona não tem preço, mas é preciso ter persistência, foco e amor para superar os desafios da profissão.

Já se passaram dez anos desde que Marília Weide, gaúcha, de 34 anos, pegou no volante pela primeira vez em uma aula de direção. Com vinte e quatro anos e a carteira de motorista habilitada para caminhões no bolso, ela iniciou a profissão neste setor ainda ocupado majoritariamente por homens.

Desde então, ela não mede esforços para ir atrás dos seus sonhos, incentivando e inspirando mulheres por onde passa. Quando começou a pandemia, em 2020, ela trabalhava em uma empresa que foi à falência. Foram dois meses trabalhando sem receber, até surgir a oportunidade de integrar o time da Deutschips, empresa de salgadinhos em que ela está atualmente.

Junto com o novo emprego, ela teve que lidar com a distância dos filhos, devido a frequência com que viaja. No último ano, em 2021, Marília esteve na estrada de segunda a sexta-feira fazendo uma rota fixa de Mariana(MG) até o Chuí(RS), tendo apenas os finais de semana livres para se dedicar à família. Durante a semana, apesar da saudade, ela fica com o coração tranquilo por saber que os filhos estão sendo bem cuidados pela mãe, apoio que ela reconhece com brilho nos olhos.

Hoje, no Brasil, as mulheres representam apenas 0,5% do total de caminhoneiros, segundo pesquisa realizada em 2019 pela Confederação Nacional do Transporte (CNT). Diferente dos homens, além das cargas do caminhão, as mulheres carregam também o peso do machismo em seu dia a dia profissional.

Mas nada intimida a garra de Marília, que encara os desafios da profissão de cabeça erguida e relata para nós, da IVECO, em primeira mão, detalhes sobre a vida de caminhoneira, neste Dia Internacional da Mulher.

IVECOFale sobre a sua trajetória como mulher, mãe e caminhoneira. Quais são os marcos da sua jornada? Como eles definem a pessoa que você é hoje?

Marília Weide – Fui mãe do meu primeiro filho aos 21 anos, acho que a maternidade é, sem dúvidas, o maior marco da minha jornada. A direção esteve presente na minha vida desde pequena, já que meu pai sempre teve oficina, ônibus, caminhão. No entanto, só fui realmente exercer a profissão aos 24, quando finalmente me tornei uma mulher feliz e realizada, pois atrás do volante é quando me sinto plena. Aos 30, tive meu segundo filho, em um momento inesperado, mas que veio pra me fortalecer ainda mais! Com tudo isso, hoje me sinto capaz e imparável como mulher, mãe e profissional. Se eu quero, eu posso, eu consigo, porque eu vou à luta!

IVECOComo é a profissão, você sente que tem reconhecimento pelo que faz?

Marília Weide – Bom, é um meio bem masculinizado e machista ainda, em que nós mulheres ainda encontramos muitas barreiras, inclusive para entrar no mercado. Quando abre uma vaga para motorista numa empresa, por exemplo, digamos que, num total de 100 pessoas concorrendo, uma vai ser mulher e 99 serão homens. Eu nunca encontrei uma outra mulher disputando alguma vaga comigo. Nunca!

Na empresa em que estou hoje, eu fui contratada na terceira entrevista, pois eles resolveram me dar uma oportunidade após se decepcionarem com profissionais homens que tiveram anteriormente. 

Como forma de reconhecimento a essa pequenininha, baixinha, mulher e mãe,   eles fizeram até um caminhão rosa para mim e me senti muito valorizada! Mas ele acabou ficando pequeno para a quantidade de cargas que eu transporto hoje, então não estou mais com ele. 

Apesar de ainda ser uma profissão dominada pelos homens, acredito que, aos poucos, vamos conquistando nosso espaço e mostrando que somos capazes de exercer com excelência a função que quisermos. 

“Ignore a opinião alheia. Se você não olhar para o lado e tapar os ouvidos, ninguém vai te parar.”

IVECO – Quais as principais barreiras que enfrentou na profissão por ser mulher e quais são suas sugestões para enfrentá-las?

Marília Weide –  São várias. Como eu disse, muitas vezes as empresas não contratam a gente porque preferem um homem para a vaga, então acabam dando uma desculpa. 

Além disso, quando estou na estrada, às vezes tenho que pernoitar no caminhão, tomar banho no posto, utilizar banheiros mistos em alguns casos, entre outros, mas eu, particularmente, não vejo essas questões como grandes problemas, afinal cresci neste meio e aprendi a relevar esses detalhes. 

A principal barreira, sem dúvidas, é o machismo! A gente ainda escuta piadinhas como “mulher no volante, perigo constante”. Muitos homens se intimidam, acham que estamos invadindo o espaço deles e que deveríamos estar fazendo outras coisas.

Em grupos de caminhoneiros nas redes sociais, é comum ver comentários bem desagradáveis. Tenho uma colega que sofreu um acidente com a carreta recentemente e eles comentaram: “Se tivesse em casa lavando roupa, não tinha acontecido”. Todos os dias acontecem acidentes diversos com homens, mas quando há uma mulher envolvida, eles se sentem no direito de dizer esse tipo de coisa.

Minha sugestão para as mulheres que querem entrar na profissão é: seja persistente. Se esse desejo não estiver forte dentro de ti, se o diesel não estiver correndo nas suas veias, você pode acabar desistindo na primeira dificuldade. 

Prepare seu psicológico e entenda que preconceitos sempre vão existir, então foque em cumprir seus objetivos da melhor forma! Não se desgaste ou se abale com comentários de pessoas que não acreditam em ti e nem se iluda com elogios. 

Às vezes, te elogiam demais e tu acaba se estagnando, acha que já está ótima assim e não evolui mais. Da mesma forma, quando alguém diz “desiste, isso não é pra ti”, esse comentário vem sempre de quem não teve coragem ou não foi capaz de conseguir o que você está buscando. E porque a pessoa não conseguiu, ela acha que tu também não vai. 

Então, de maneira geral, é isso: ignore o machismo e os comentários que tentam te desanimar! Siga fazendo o seu melhor, tenha garra e persistência sempre, e coloque foco total no seu objetivo. Se você não olhar para o lado e tapar os ouvidos, ninguém vai te parar. 

“se o diesel não estiver correndo nas suas veias, você pode acabar desistindo na primeira dificuldade.”

IVECO – Quais as principais dicas para mulheres que estão em busca de sua independência financeira?

Marília Weide – Eu sempre procurei ser independente para não depender de ninguém, comecei a trabalhar ainda na adolescência para ter meu próprio dinheiro logo. Mas, independentemente da idade que tu começas, acho que é muito importante para a formação do caráter correr atrás do que é teu, porque tu passa a dar mais valor para as tuas coisas.

A principal dica que eu dou é: aproveite as oportunidades disponíveis hoje para ser livre financeiramente. Se hoje eu ficasse desempregada, por exemplo, iria recorrer aos aplicativos que temos na profissão de motorista, como Uber e 99. 

Hoje em dia, com a internet, a gente tem uma chance muito maior de crescer e se aprimorar, são infinitas as possibilidades! A questão é ter determinação e procurar dentro da área que tu quer, para construir seu próprio caminho

IVECO – Estudos mostram que as mulheres, em particular, estão buscando uma melhor qualidade de vida, reavaliando sua relação com o trabalho e a família. Qual a sua opinião sobre isso? Você acredita que exista uma receita para conciliar a vida pessoal e profissional?

Marília Weide – Como caminhoneira, às vezes passo uma semana longe de casa, mas só vou tranquila porque meus dois filhos ficam com a minha mãe. No meu caso, contar com ela é fundamental, pois é o que me dá condições de conciliar os papéis de mãe e profissional. Então uma das receitas é, sem dúvidas, ter alguém de confiança para se apoiar.

Quando estou com meus filhos, aos finais de semana, busco aproveitar ao máximo o tempo ao lado deles. Temos o dia da pizza, aos sábados, e curtimos bastante. Então, sim, acho muito importante nós buscarmos esse equilíbrio entre trabalho e família. 

IVECO – Como você definiria o empoderamento feminino? O que é uma mulher empoderada para você?

Marília Weide – Uma mulher empoderada é aquela que sabe o que quer e não depende de ninguém para realizar seus sonhos. Ela levanta a cabeça e vai à luta. Gosto sempre de reforçar que não queremos tirar o lugar dos homens, mas sim mostrar que também temos a mesma capacidade para fazer o que quisermos. Então, a mulher empoderada entende que pode ser o que ela quiser. Se assim como eu, ela quiser ser mãe, pai, profissional, tudo ao mesmo tempo, ela pode ser. Claro que a gente não é de ferro, precisamos ter um jogo de cintura para equilibrar tudo, mas não há limitações. Temos força suficiente para isso! 

IVECO – Em um setor controlado por homens, como o de transporte, como você enxerga a importância de, cada vez mais, caminhoneiras estarem presentes na profissão em diversas partes do mundo?

Marília Weide – Ah, a mulher tem um cuidado que é só dela e isso faz toda a diferença! Sem desmerecer os profissionais masculinos, mas a gente tem um olhar mais delicado para tudo e uma essência de amor maternal que já nasce com a gente! 

Por exemplo, no transporte coletivo, quando tem um idoso na parada, os motoristas (homens), em muitos casos, só param, abrem a porta e já arrancam o ônibus, antes mesmo do idoso se sentar. Já trabalhei em transporte coletivo e conheço outras colegas que também têm essa cautela, a gente espera o idoso se acomodar e saímos com o ônibus lentamente, sem dar aquela arrancada. 

Acredito que isso também é sobre olhar para o futuro com empatia pelas pessoas mais velhas, porque um dia estaremos nesse lugar. O mesmo ocorre para as grávidas, a gente lembra que já esteve ou pode estar naquela situação um dia e sabe que é um período que exige mais cuidado e carinho. Sem contar o tratamento de forma geral. As mulheres costumam ser mais calorosas, então se tu chega num transporte coletivo e tem uma mulher dirigindo, as chances de tu ser recebido com um sorrisão e um boa tarde são bem maiores.

IVECO – Quais são os sentimentos ao encontrar outras mulheres na estrada?

Marília Weide – É muito difícil encontrar mulheres na estrada, então a gente sente até surpresa quando encontra. A primeira amizade feminina que fiz nesse meio foi através do Instagram. Ela disse que tinha o sonho de ser caminhoneira, conversamos bastante e eu super motivei ela a correr atrás disso. Em pouco tempo, ela conseguiu a primeira oportunidade e, num belo dia, enquanto eu estava em Santa Maria, ela passou por mim e me reconheceu facilmente, por conta do caminhão rosa que eu tinha na época. Trocamos mais mensagens e até combinamos de pernoitar juntas.

Também conheci a Eliane, enquanto fazia entregas em Porto Alegre, que é super querida. Mas nem sempre é assim, já trabalhei com outra mulher que me tratava mal também. Infelizmente, ainda existe uma certa competição entre algumas mulheres que se sentem intimidadas umas com as outras, como se quisessem ser as únicas do segmento. 

Eu sou muito de apoiar, incentivo mesmo, e quero ver cada vez mais mulheres na estrada, evoluindo profissionalmente e ocupando a profissão! Eu adoro quando vejo uma carreta e percebo que está sendo dirigida por uma mulher. 

“quero ver cada vez mais mulheres na estrada, evoluindo profissionalmente e ocupando a profissão.”

IVECO – Dê um conselho para mulheres que estão buscando seu espaço, uma maneira própria de viver e liderar?

Marília Weide – Bom, não vou negar que é uma profissão difícil de iniciar porque o primeiro pré-requisito das vagas são dois anos de experiência na função.  E como é que você vai ter dois anos, se não te dão a primeira oportunidade? Então, meu conselho é: não desista no primeiro ‘não’ que receber, nem dê ouvidos para pessoas frustradas, que não conseguiram e acham que tu não vai conseguir.

Também é preciso ter consciência de que é, sim, uma profissão de risco. Dirigir um caminhão é lidar com uma máquina que, em mãos ou circunstâncias erradas, se torna uma arma, porque a gente lida com trânsito e pessoas. 

No transporte coletivo de passageiros, é ainda mais sério, porque tu não vai estar lidando com carga, caixas e objetos, mas sim vidas. Essas pessoas vão embarcar no teu ônibus porque precisam daquele transporte, então tu é responsável por até 50 vidas que estão ali confiando em ti, por exemplo.

Mas você precisa acreditar em você antes de qualquer um. Se souber persistir, tendo consciência dos riscos e dos desafios, dando o seu melhor, as oportunidades aparecem! No momento certo, na hora certa, as coisas acontecem!

IVECO – Acreditamos que as mulheres são fortes agentes de transformação. Quando elas se transformam e se empoderam, acabam contagiando o seu entorno, trazendo evolução também para as pessoas à sua volta. Você concorda? Tem alguma mulher, ou outras mulheres, em que você se inspira?

Marília Weide – Concordo muito, temos que ver o sucesso de outras mulheres como inspiração. Eu sempre pensei assim: “se ela conseguiu, eu também consigo, porque não é algo impossível.” Ou seja, se alguém já faz, que bom, é sinal que tu também é capaz de fazer. O nosso gestor aqui na empresa tem o seguinte lema: “Insista, persista e nunca desista”, e isso serve pra tudo na vida.

Eu aprendi a dirigir junto com a minha ex-madrasta, que foi uma das motoristas pioneiras em Sapucaia do Sul. Uma baita de uma profissional, um dos meus maiores exemplos. Sem dúvidas, a transformação dela me ajudou a me transformar também. Tive vários exemplos na família que me inspiraram, como meu pai e meus primos, então acredito também que ser caminhoneira está no sangue! 

IVECO – E você sente que sua história inspira outras mulheres de alguma forma?

Marília Weide – Eu sinto, vejo e recebo muitas mensagens de mulheres dizendo: “Nossa, te admiro demais”, “Como queria ter a tua coragem”, “Meu sonho é dirigir”. Sempre devolvo com todo meu incentivo: “É difícil, mas se eu consegui, tu também vai conseguir.” 

Sou apaixonada pelo volante, morro de orgulho da minha profissão e adoro encontrar mulheres que também se identificam e têm esse sonho, então tento fazer elas enxergarem que todas temos essa força.Sempre digo que é viciante a sensação de liberdade na estrada. É claro que existem os perrengues também, não é fácil, mas é uma profissão que precisa ser feita com amor. Alguns até podem começar só pela grana, por necessidade mesmo, mas só continuam neste ofício aqueles que têm amor pelo que fazem.

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